“cada ciudad puede ser otra
cuando el amor pinta los muros
y de los rostros que atardecen
uno es el rostro del amor”
Mario Benedetti
Mario Benedetti
- ¿Que buscás, en este lugar de viejos?
Sendo ele um entre os outros de similares vestimentas e atitudes, acostumei-me à sua presença naquele local. Sentava-se em uma das mesas que tinham um cinzeiro metálico ocupando uma espécie de nicho redondo central e ficavam próximas do balcão alto de cedro envelhecido. Possuía um acento na língua que era o mesmo do lugar, mas que era também diferente.
- ¿Que buscás, en este lugar de viejos? Repetiu a pergunta e pediu uma permissão que a minha timidez não chegou a dar. Sentou-se. Estivera naquele café todos os finais das manhãs dos últimos dois meses. A media-luna-cafe-y-leche faria as vezes de desjejum e almoço antes do início pontual das aulas às treze, na Faculdade de História. Como sabia jamais conseguir começar um dia direito antes de ter esgotado ao menos meio termo de mate, escolhi o turno da tarde para os estudos, que mesclavam o idioma de Cervantes à pesquisa de particularidades sobre os vinte e três povos da banda ocidental do Uruguay, a quem dedicaria em breve o trabalho de conclusão de curso. Mas estas eram as referências formais, os argumentos que eu dera à vida, antes de deixar atrás família, trabalho, amigos. Precisava descobrir algo e aquele “bar de viejos” era a minha referência, quando a solidão e a saudade ficavam impossíveis de conter nas mãos, ou seja, todos os dias. Daquele lugar e, saberia mais tarde, de toda a vida. Gostava de ouvir as histórias que repetiam, sem que se suspeitassem ouvidos. Desde o primeiro dia que atravessei os paralelepípedos da Ituzaingó, partindo do hotel barato onde me hospedava na ladeira que iria chegar ao porto e, logo além, ao velho mercado público, escolhia sempre a mesa ao lado de uma das janelas que viam a calçada, em parte para fugir da fumaça dos cigarros e, em outra, do cheiro antigo do lugar, que paradoxalmente enchia-me de acolhimento e me agravava as crises de uma asma recém-inaugurada. Renovavam-se os grupos, mantinham-se os temas. A política, a economia, os feriados agrícolas, o projeto de lei que permitiria desapropriações e a extensão da rambla costeira no sentido norte, até o bairro onde depois se construiria a ala nova e abastada da cidade, uma ou outra reminiscência ou queixume de amor. Preenchiam-me.
Nas semanas seguintes, num acordo tácito, compartilharíamos a mesa. Em troca de que não fumasse, eu trazia para ele bombons recheados de creme de café comprados em um único quiosco na rua que ladeava a catedral. Contaria que, sendo aquele o seu país, ainda assim era também um quase-estrangeiro. Havia retornado depois de muitos anos, um projeto político ou cultural que não compreendi direito. Aliás, era isso o que quase sempre acontecia. Perdia-me na sonoridade da fala, no timbre um pouco rouco da voz. Desconectada do sentido do que estava sendo dito, enroscava-me no som. Como quem tem muito a dizer, ele não falava lento. Interrompia-se frequentemente para cumprimentar outros, tinha muitos amigos. A cada vez, tirava da valise um livro diferente de onde lia para mim parágrafos inteiros. Livros seus e de outros. Por vezes, indagava das minhas leituras e criticava minhas escolhas, alertando-me sobre as tendências políticas de cada um dos escolhidos. Mas era A Voz. A voz atravessando a distância da mesa. Poderia ensinar-me muito mais do que o curso, eu tinha essa consciência. Mas não conseguia. Aquele ritmo não permitia. A voz dominava tudo. Por vezes conservava fragmentos, para que pudesse pensar neles depois das aulas.
Na penúltima quinta-feira do terceiro mês, a mesa da janela esteve silenciosa. O inverno mostrava seus dentes e um vento polar cortava a ladeira, subindo desde o mar até a Plaza Matriz. Quando estava por sair, Elvira entregou-me o papel.
“No derrames sobre mi tus ojos
Nas semanas seguintes, num acordo tácito, compartilharíamos a mesa. Em troca de que não fumasse, eu trazia para ele bombons recheados de creme de café comprados em um único quiosco na rua que ladeava a catedral. Contaria que, sendo aquele o seu país, ainda assim era também um quase-estrangeiro. Havia retornado depois de muitos anos, um projeto político ou cultural que não compreendi direito. Aliás, era isso o que quase sempre acontecia. Perdia-me na sonoridade da fala, no timbre um pouco rouco da voz. Desconectada do sentido do que estava sendo dito, enroscava-me no som. Como quem tem muito a dizer, ele não falava lento. Interrompia-se frequentemente para cumprimentar outros, tinha muitos amigos. A cada vez, tirava da valise um livro diferente de onde lia para mim parágrafos inteiros. Livros seus e de outros. Por vezes, indagava das minhas leituras e criticava minhas escolhas, alertando-me sobre as tendências políticas de cada um dos escolhidos. Mas era A Voz. A voz atravessando a distância da mesa. Poderia ensinar-me muito mais do que o curso, eu tinha essa consciência. Mas não conseguia. Aquele ritmo não permitia. A voz dominava tudo. Por vezes conservava fragmentos, para que pudesse pensar neles depois das aulas.
Na penúltima quinta-feira do terceiro mês, a mesa da janela esteve silenciosa. O inverno mostrava seus dentes e um vento polar cortava a ladeira, subindo desde o mar até a Plaza Matriz. Quando estava por sair, Elvira entregou-me o papel.
“No derrames sobre mi tus ojos
Soy viejo y tengo los dedos artrosados.
Si acostumbrarme a tu presencia,
después las mañanas quedarán
más frías.
Tuyo,
M.”
Comecei a desejar ser mais velha, ter lido mais. Muito mais. Conseguir impressioná-lo com algo que ele ainda não soubesse. Não adiantava, era uma apenas uma estudante tonta, com parcos conhecimentos do que quer que fosse. Nas semanas seguintes, à medida que nossa amizade aumentava, desejei que as aulas iniciassem mais tarde. Da janela do hotel, não raras vezes surpreendia-me cuidando a rua e sua chegada ao café. Esperava pelos dias de vê-lo como se deles dependessem as respostas para as perguntas que eu sequer havia elaborado. Ainda. Elas viriam depois, no curso da vida, que naquele momento se contava por dois dias. Preciosos dias. O calendário era feito de terças e quintas-feiras.
Nas últimas duas semanas do quarto mês, ele não apareceu. Então, as conversas dos velhos aborreciam-me. Mesmo Elvira, com sua delicadeza em servir-me dia após dia sempre o mesmo pedido, parecia outra. Os navios coloridos que se alternavam no porto e o ruído alegre das bancas do mercado já não pareciam atrativos. O trabalho tornara-se uma teia sem inicio ou fim, um labirinto de informações desimportantes demais, desconexas demais, criticáveis demais. De qualquer maneira, as informações estavam todas ali e eram tudo de que necessitava para concluí-lo. Aproximava-se o dia de subir as escadas do avião de retorno. Tudo o que precisava era não pensar. Manter a rotina, cuidado indispensável de não queimar navios.
Quando ele apareceu já eram doze-e-um-quarto. Na mão esquerda, a pasta escura de sempre. Na direita, escondida atrás do sobretudo, uma gérbera. Vermelha. Somente uma. Explicou-me da ausência, da necessidade que teve de viajar repentinamente, então silenciou. Olhava a chuva através do vidro e pela primeira vez não leu. Apontou o paraguas e ofereceu-se para acompanhar-me até o Instituto. Beijou-me um gosto de dor e despedida, depois sorriu pela metade: “tu juventud no merece esta melancolia.”
Comecei a desejar ser mais velha, ter lido mais. Muito mais. Conseguir impressioná-lo com algo que ele ainda não soubesse. Não adiantava, era uma apenas uma estudante tonta, com parcos conhecimentos do que quer que fosse. Nas semanas seguintes, à medida que nossa amizade aumentava, desejei que as aulas iniciassem mais tarde. Da janela do hotel, não raras vezes surpreendia-me cuidando a rua e sua chegada ao café. Esperava pelos dias de vê-lo como se deles dependessem as respostas para as perguntas que eu sequer havia elaborado. Ainda. Elas viriam depois, no curso da vida, que naquele momento se contava por dois dias. Preciosos dias. O calendário era feito de terças e quintas-feiras.
Nas últimas duas semanas do quarto mês, ele não apareceu. Então, as conversas dos velhos aborreciam-me. Mesmo Elvira, com sua delicadeza em servir-me dia após dia sempre o mesmo pedido, parecia outra. Os navios coloridos que se alternavam no porto e o ruído alegre das bancas do mercado já não pareciam atrativos. O trabalho tornara-se uma teia sem inicio ou fim, um labirinto de informações desimportantes demais, desconexas demais, criticáveis demais. De qualquer maneira, as informações estavam todas ali e eram tudo de que necessitava para concluí-lo. Aproximava-se o dia de subir as escadas do avião de retorno. Tudo o que precisava era não pensar. Manter a rotina, cuidado indispensável de não queimar navios.
Quando ele apareceu já eram doze-e-um-quarto. Na mão esquerda, a pasta escura de sempre. Na direita, escondida atrás do sobretudo, uma gérbera. Vermelha. Somente uma. Explicou-me da ausência, da necessidade que teve de viajar repentinamente, então silenciou. Olhava a chuva através do vidro e pela primeira vez não leu. Apontou o paraguas e ofereceu-se para acompanhar-me até o Instituto. Beijou-me um gosto de dor e despedida, depois sorriu pela metade: “tu juventud no merece esta melancolia.”
(Texto: CeciLia Cassal - Imagem: Ricardo Furtado)
12 comentários:
Que buscás, en este lugar de jóvenes?
Lindíssimo, Cecilia!
Cecília:
faltou-me o ar. Pensei na minha melancolia. Compreendi a dele. Pensei na tua juventude plena e, no entanto, nada inocente. Não merecias a melancolia de um país triste, o Uruguai, mas merecias (mereces) a sua profundidade mergulhada em constante poesia. Que tu, como raros, reproduz e recrias.
Teu, sempre, leitor.
Beijos admirados.
vim e voltei mais uma vez para captar através da melancolia essa possibilidade de encontro no descompasso cardíaco. É tanta beleza que dói.
bj
guilhermina
Bravo!
CC
É o tipo de texto que nos diz tanto que falar qualquer coisa depois de o ler parece... sem sentido.
A Guilhermina disse muito bem: beleza que dói...
Beijos.
O que eu gostaria de dizer não cabe em palavras. LINDO. beijo
Sensível e abençoada ceciLia, nada é lido ao som de piazolla impunemente, sei. E como. Mais justo recomendar o corte aos pulsos. Porque é sanha certa.
Lindo. Lindo. Lindo texto. Até sem o piazzola. Como tudo aqui.
Você me lê.
E nem eu, me lia.
A tanto.
Abraço com admiração.
Sua nova fã confessa.
intenso!!
hospede-se sempre na casa de paragens... meu lar teu lar :)
desde a primeira vez que vi postado este teu conto, o título, tal qual um imã, me atraiu e me intimidou. não consegui lê-lo. hoje, criei coragem. li. a frase final me explicou o por quê da reticência. melancolia muito me atrai. muito me intimida. e sua escrita é portentosa. 1 bj
Falar o que depois disso tudo?
Queria tb ter nascido antes,lido mais,aprendido bem mais...
melancolico.....e lindo
Denise
Querida Cecília:
Ninguém visita teu blog impunemente. A boca sensual, o vermelho gerbera, a presença de
Benedetti, tudo isso sublinhado por
Piazzola, remete ao grande prazer de viajar por teu roteiro de emoção, ofegante, taquicárdico e feliz! Um beijo carinhoso!
Saul
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