terça-feira, outubro 14, 2008

Helga

Na primavera do Rio dos Ameandros, o amarelo intenso dos ipês margeia a estrada. Há um quero-quero cioso do seu ninho e o som das marteladas de João Rudá no telheiro das lenhas preenche a manhã. Aqui, o silêncio quebrado de Helga, entre um e outro mate, contando-me...

“E então eu lhe pergunto: o que pode uma mulher sem saídas fazer, quando outra toma-lhe o marido?

Entregar-se ao desvario sem noite nem açoite, achar uma ponte escondida donde jogar-se, cruzar os portais da loucura cantando ladainhas na frente de um altar qualquer?

Pergunto mais: o que pode uma mulher sem saídas fazer, quando a outra que lhe toma o homem ainda no engalfinhado da Vida é a Inominável, Aquela a quem não se pode convencer do contrário, uma vez decidida a levar quem-quer-que-seja?

Pois então, era eu essa mulher. Nada sabia da vida sozinha, sem um parceiro para matear quando o sol acorda a vida depois dos vermelhos que acendem o horizonte, nada sabia das panelas sem cheiros que pudessem agradar a um homem faminto quando chega das lides, nada sabia como era não ter de quem cerzir meias ou limpar os barros dos sapatos, quando voltam das roças. Não sabia como era a cama vazia quando o frio chega, de não ter quem remexa o braseiro se ele ameaça amortecer, como era ver o pomar crescer sem poda nem colheita temporã. Quando o Seu Antônio-do-empório chegou com a notícia, ele que era o dono do rádio-amador e das notícias de todos em Rio dos Ameandros, pois foi quando ele chegou e me disse que meu marido tinha passado, foi então que eu tive que decidir.
E decidi mesmo, desse jeito que eu sempre achei bobagem que mãe dizia, que tinha uma hora que a gente precisava enxergar rápido a vida toda pra trás da gente e tentar adivinhar o que viria na frente e resolver rápido entre se deixar abater e apodrecer feito mulher endoidada, ou erguer a fronte e seguir em frente, foi nesta hora, que deveria ser de dor e tudo, que deveria ser de arraso e pranto e desespero, foi nessa hora mesmo que eu resolvi que queria seguir viva. Ainda não sabia bem como era isso, quantas contas precisaria fazer, quantas safras e quais por colher, quem iria me ajudar com os porcos, o soja, os milhos amarelando na lavoura. Também não pensei nas necessidades do corpo, nas carências de vozes e motivos, nos meninos que não tive esperando o melhor tempo e o tempo que nunca chegou de colher filhos entre as espigas do trigo. Foi nesta hora que tive a notíca da Derradeira e que sabia que precisaria estar viva.
Viva pelos cardeais no viveiro, viva pelas caturritas em bando que devoravam o milharal e enchiam o dia de alaridos. Bem que eu gostava das caturritas. Colocava lá os espantalhos de panos e palhas e milho, mas que elas me alegravam o dia com suas algazarras, isso não podia negar. Foi nesta hora, em que soube da morte do meu marido lá no hospital da cidade, de uma doença que eu ainda não tinha entendido direito o que era, foi nessa hora mesmo que – entre a raiva por ele ter me abandonado tão cedo e a certeza de que sentiria saudade - foi nesse embate de sentimentos que pedi a Deus, se ele existia mesmo, pra me manter viva.

O segundo motivo era João...”


Como escutando com o pensamento o chamado pela voz para ele inaudível de Helga, João entra na casa, nas mãos uma treliça de galhos cuidadosamente escolhidos, com os quais produziu um biombo para separar-me o quarto do restante do rancho que ajudou-me a compor, aqui no Rio dos Ameandros. Helga, entre o respeito e o recolhimento, volta às panelas.


(Texto e Imagem: CeciLia Cassal)

10 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Esse é um daqueles... Só podia ter sido escrito por quem foi. Coisa de gaúcho, está se vendo. Isso dá um baita romance, estou certa?

DE-PROPOSITO disse...

quando outra toma-lhe o marido?
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Acredito que ninguém toma nada de nada. As coisas têm de ser recíprocas.
Fica bem.
E a felicidade por aí.
Manuel

Mara faturi disse...

Ceci,

AFF..LINDÍSSIMO!!! Daria mesmo um romance, uma peçade teatro ( fiquei até imaginando)!!! e até suspirei em certo saudosismo,lembrando de minha infância de tias fortes e de milharais!!! precisamos prosear de perto sobre...até separei pra vc uma caixinha de fósforos poética ( sabe qual né?),para que acendamos um incenso;sim,porque palheiro não é nossa cara,rs,rs...bjão!!!

Rubens da Cunha disse...

perfeito. da linguagem à personagem. lindo mesmo.
tenho uma amiga com esse nome, vou pedir para que ela venha aqui te ler :))
beijos

Anônimo disse...

Belo e de muitos sentimentos. Entendo o que está escrito....tomara que Helga acorde deste pesadelo pois é possível.
Bjs,
RE

Anônimo disse...

quando comecei a ser assíduo daqui, este cenário e estes personagens eram frequentes - ou ao menos agora, sem consultar seu arquivo, me parecem tão familiares -, e eu me espantei com a qualidade literária que vc tirava deles. fiquei feliz em revê-los. continuam, eles e vc, bastante sinergizados. bom para nós, seus leitores. 1 beijo

Ilaine disse...

Cecilia!

Ao ler teu texto, tive a impressão de ler um romance. Deliciosa leitura, lindamente escrito. Quero saber mais de Helga e João...

Beijo

Janaina Amado disse...

CeciLia,
Estou vindo do Verso&Prosa. Gostei imenso, como dizem os portugueses. "Helga" é lindo; "Nudez", primoroso. Você tem livros publicados (que eu não dispenso um papelzinho)?

Assim que sou disse...

Cecília,

Te leio na manhã chuvosa do domingo carioca. E tão surpreendente quanto imaginar um domingo chuvoso no primeiro dia do horário de verão recebo teu texto.
Me senti - confesso - em meio ao universo de Érico Veríssimo. Essa coisa gaúcha me atrai sempre. E a história, o enredo, a narrativa...absolutamente sedutores.
E gostei mais ainda de uma imagem que sempre persigo nos momentos em que não apenas o céu se cobre de nuvens, mas cubro de nuvens minhas idéias: a de que devo seguir em frente...sempre.
Lindo demais e absolutamente estimulante para hoje.

beijo grande. Veronica

Jacinta Dantas disse...

Nossa, Cecília, do jeito que a história vai fluindo, dá para eu visualizar o cenário e escutar os sentimentos. Muito bom ler-te agora.
Beijo