domingo, março 09, 2008

Aço e Nada

Ele saiu correndo e era bem de manhã. Amarrou os cadarços e a coragem, arranjou a contenteza nos olhos e partiu com o vento, espada solar. Esqueceu promessas e benesses e desmanchou-se céu afora. De onde estava, desdenhou da correnteza da vida besta dos livros de auto-ajuda e emprenhou-se de uma felicidade não comprada pelo relógio-ponto. Andou à noite pelas ruas sem saber ao certo quem era. Onde a inteligência suficiente para ser especial?, desdenhava-se. Desmembrava-se pelo avesso, os dentros atraiçoando os mistérios do signo. Quando teve saudades de cavalgar poemas, reencontrou o passado e amaldiçoou as visões proibidas aos frágeis. Divorciou-se e entregou a solidão a um sapato abandonado na rua, não queria dar chances de retrocessos. Quis conhecer as timoneiras do metrô e os pilotos anônimos que deixavam escritas brancas em linhas sobre o céu. Transitou nas noites insones entre a paixão e o devoramento da rotina e abominou os fins procrastinados. Analisou os mapas virgens inscritos em fotos antigas e perscrutou tartarugas milenares. Mas era de tarde e havia no amor a urgência dos amantes emaranhados e medrosos durante duas eternas horas. Adivinhou a vida secreta das mulheres santas e loucas e perdidas e ricas numa nudez de lamber sal e cheirar gozando pedras impronunciáveis. Foi Jeremias, Dante, Alexandre, Lucrécia e Hamlet: quando viu, a vida passara. Apaixonou-se de novo num instante para depois desdenhar de rosas vermelhas, chocolates e Joyce. Outro dia, construiu nos olhos marimbondas casas e brincou barranco monstros enxurrada maviosidades outras. Teve pensão do passado e declarou-se inventor da substância impalpável da poesia.
Aço e Nada, o livro do Rubens da Cunha, traça retratos cotidianos de uma delicadeza contundente. Por outro lado, aço é nada perto da solidez de suas construções. São idéias, muito mais que palavras, semeadas nas entrelinhas.
(Texto e imagem: Cecilia Cassal - Um Trem para o Tigre)

12 comentários:

douglas D. disse...

Gosto muito do que o Rubens escreve.
bjo!

Anônimo disse...

esse sim, um texto iluminado e tanto. belo, CeciLia. grande abraço e admiração recíproca.

meriam disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edilson Pantoja disse...

Oi, Lia! Gosto de textos livres e liberdade é o que move este. E o faz num ritmo que também é muito bom.
Abraço, querida!

Rubens da Cunha disse...

obrigado Cecília, pelo texto,
fico tão contente quando minhas palavras ressoam na dos meus iguais.
sensação de não estar só.

abraços
Rubens

Dalva M. Ferreira disse...

Ninguém é uma ilha... mas às vezes parece. Abraço.

meriam disse...

Cecília, parabéns pela alma amorosa, um brinde a poesia que você faz do dia-a-dia. Nossa metade folhagem que nos faz suportar a nudez de desertos diários.
Coloquei no Recanto das Letras um recadinho, simples e de coração, para todos que se atrevem a brincar poesia.

http://recantodasletras.uol.com.br/sonetos/900583

Um brinde!

Beijos,

Meriam

CarolBorne disse...

Cecília querida, plagiando a Dalmaria, quando eu crescer, quero escrever como tu!

Minha 'ídola', beijo grande!

Mara faturi disse...

Cecília,

que mágico encanto...cheguei de férias hj e visitei seu cantinho...lugar de "marimbondas casas" ; "cantantes" palavras que me sussusurram suave ao ouvido...
ótima semana,
bjo!

Anônimo disse...

belo e generoso texto... o talento de agrupar palavras a serviço do talento do outro... 1 bj

Wilson Guanais disse...

Cecilia, segunda feira envio seu livro.
bjss

Anônimo disse...

Ele é como um cometa.

Traz a beleza da vida e ilumina os céus da humanidade enquanto ruma inexoravelmente para seu fim.

E sabe disso.