quinta-feira, novembro 30, 2006

Vermelhos

(foto: Marco Ricca)
Uma das primeiras providências que tomei antes de mudar de vez para o Rio dos Ameandros foi não ter ao alcance caneta ou computador. Não queria a tentação de registrar minha história verdadeira, nem a de antes e muito menos a que vai se passar nesta nova vida que espero que chegue, daqui para adiante. Tampouco não queria que - caso escrevesse uma história inventada - alguém pudesse tentar adivinhar-me fazendo inferências sobre o que não aconteceu. Ou mesmo sobre o que possa ter acontecido. Do meu passado, suspeito que intuitivamente João Rudá tenha um conhecimento muito próximo da verdade. Percebo isso pelo jeito como ele me olha, quando me vê plantando. Ou então quando - no silêncio que lhe é peculiar - me encontra entre temperos e se retira, discreto, como para não ler-me sequer as lembranças, nesta hora de desvelamentos. Mas João Rudá não fala e, assim, me preservo.
Só que agora preciso deixar um registro, então valho-me do pequeno gravador que trouxe de presente à Ana Letícia, a neta do dono do armazém. Como ainda não o entreguei, sirvo-me dele.
Este que agora espera no portão, não sei se devo recebê-lo. A que virá, numa hora destas de noite escura, principalmente depois do que aconteceu ontem? Sim, sei que fui precipitada, que o impulso - este mesmo que me fez silenciar a vida em Rio dos Ameandros - falou outra vez mais alto. Mas não podia deixar que ele ficasse lá, impune, a prepotência feito criatura, dizendo de mim o que não se deveria dizer a ninguém. Naquela hora logo antes do jantar o armazém do seu Eleutério, o gringo, estava quase vazio. Depois que pedi as coisas da lista que havia levado, leite, biscoitos, pó-de-gafanhoto, o acendedor para a pequena lareira que o bom João construiu junto ao fogão de tijolos, bem no centro da casa de um só cômodo... sim, foi quando pedi o acendedor e seu Eleutério não sabia o que era, que eu expliquei: aquelas barrinhas feitas de serragem aglomerada, com uma cabeça parecida com paus de fósforo, elas ficam acesas uns dez minutos até que a lenha mais seca prenda fogo de vez. Foi bem neste momento que percebi o movimento de alguém na ponta do balcão. Quando o gringo falou que não tinha e me ofereceu uns gravetos e eu já estava saindo, foi que ouvi a voz, clara, às minhas costas: " mas será que o homem dela não sabe acender um fogo?" Não me virei. As chaves do carro nas mãos, senti apenas um calor subir às faces. Jamais daria a estranho mal-educado algum o privilégio do meu rubor, que era do mesmo vermelho que lavrei raivosamente com o arado das pontas da chave. Do fim ao começo de todo o lado da caminhonete imponente do desconhecido, uma vingança de vinco fundo, a lata nua aparecendo do meio para o fim do risco. Nunca mais este peste vai ser grosso deste jeito. Ao menos comigo não.
Agora ele está aí, no portão. Até enquanto os labradores conseguirem impedir-lhe a entrada.
(Hoje, 30 de novembro, a galope do veloz sagitário, a Lua completa sua primeira órbita em Vênus. Neste passeio, descobri que os Guapuruvús são amarelos e quem deita dilúvios lilases nas calçadas deste Porto são os Ipês. Que Deus os preserve a todos, enfeitando esta cidade).

10 comentários:

Anônimo disse...

cheguei atrasado, mas espero que vênus (meu regente) ainda me permita dizer à lua que meu caminho é feito ingerindo boas doses de sua claridade... ah, e João Rudá e tudo que gravita em torno dele é de minha muita predileção. salve, cecília. salve teu blog. 1 beijo

Anônimo disse...

Saboroszszszsisssimo, seu texto. João Rudá? já estou conhecendo de outras histórias. Sou homem e confesso: tenho certa dificuldade, para acender fogão de lenha. Devagar estou aprendendo as manhas. Parabens, pela primeira órbita em Vênus de sua Lua em Libra. Coincidentemente meu signo. AbraçoDasMinas.

E.T.: o projeto começará agora em dezembro.

Edilson Pantoja disse...

Oi, CeciLia! como vai?
Pelo que vejo, uma história começa...
Abraço!

CarolBorne disse...

Sempre me comovo quando passo por aqui...
Beijão, Cecília!

Wilson Guanais disse...

vou levar outro poema seu pra là, posso?
abraço

Ricardo disse...

Oi, CeciLia.

Como foi a feira do livro?
Felizmente aqui em curitiba a feira esta cada vez maior.

Texto interessantem, sutil como é caracteristico de uma boa lua como a tua. A minha é em leão, tento mas não consigo, pelo menos até agora.

E a piazada?

bjs, Flor.

Dalva M. Ferreira disse...

Hmmmmm.... vamos ver, vamos ver...

Luciana Melo disse...

Querida, tenha um fim de ano lindo.
De alma para alma.

Anônimo disse...

teus labradores não terem me impedido de passear por aqui foi das ótimas coisas de 2006. cum deus, cecília. muita paz. muito amor. são os meus quereres pra ti. 1 beijo e inté 2007.

Anônimo disse...

maravilhoso seu texto, como todos os outros, querida amiga escritora. deixo-lhe um beijo grande e que o próximo ano seja para vc e para os seus repleto de coisas boas.