quarta-feira, junho 28, 2006

Ocos

Gosto do silêncio sério de João Rudá. Depois da lealdade em cuidar das minhas coisas, essa talvez seja a sua maior virtude. Se eu falo, ele ouve. Compreende? Quase sempre. Se eu calo, ele trabalha até o sol se por. Algumas vezes trabalhamos quietos por horas, turnos, dias inteiros. Impressionantemente, ele sabe. No começo, quando cheguei neste lugar, era só ele. Trouxe-lhe os pertences do irmão que morreu, sozinho, em uma enfermaria da capital. Ele recebeu. Deu as costas. Entrou na casa. Voltou. Escancarou a porta. Não precisava, eu já tinha visto, a casa era aquilo mesmo, aquela peça enfumaçada, a chaleira enegrecida soprando vapores sobre a chapa de aço. Agradeci. Voltei pela estrada de chão e precipício. Pensei na pobreza de pertences. Na pobreza de vozes. Na solidão. Voltei em duas semanas, uns trastes no carro: bacias, pratos de jogos descasados, copos, o casaco de um homem que já não o usaria mais. Voltaria ainda mais vezes.

Numa destas, na curva da estrada que enxerga o outro lado da montanha, uma placa: Vende-se. Estacionei, bati palmas em frente ao portão, ô de casa, o galpão distante. Ninguém. Nem um cão. Uma vaca mugindo longe. Vencido o arame que prendia a porteira, o capim crescido num caminho antigo, a porta encostada. O telheiro. Alto, caberia um trator. Uma escada, um mezanino pequeno separando em duas metades. Frestas de telhas filtravam o sol. Sobre o tablado do alto, um buraco para o céu.

João Rudá limpou. Ceifou o mato, consertou as telhas, pôs tábuas no assoalho, abriu janelas. Não tocou nas tesouras grossas de eucalipto que sustentavam as telhas. Fez um fogão de tijolos no centro de tudo, colocou chaminé de zinco com galo de ventos na saída. Não pintou. Ainda não. Comecei a ajudá-lo todos os finais de semana, exilada das demandas cotidianas. Um dia me trouxe Helga, a viúva. Não fosse por falar o que nós dois não falamos, é uma boa pessoa. Depois que foi morar com João Rudá, a tapera ganhou jardim, a privada virou banheiro. Traz as panelas de alumínio areadas e secas no sol. Helga é uma boa mulher. Fala demais, só isso. Mas faz pães de aipim magníficos. Mas planta temperos que me traz em exagero. Mas cuida do bom João, que cuida bem de meu jardim. Mas entende a mudez de nascença dele. Fala por ele também. Não sei se ele gosta. Como não ouve, acho que nem liga.

Decidi ficar por aqui. Dizem, na cidade, que é a capital da longevidade. Não importa, gosto mesmo é do que fica para cá desta porteira. O olho que corre longe, pelo vale. O outro que alcança alto, no espaço onde uns homens pensam voar, às vezes, com grandes asas. Também já pensei, era jovem demais. Também um dia quis o mar, mas era bobagem. O mar era muito mais para o desassossego do que para a conquista, pura ilusão. Grande demais. Hoje, sou o oco da árvore que fica mais lá no fundo, perto da ribanceira. Dia destes, temporal veio e um raio despencou sobre ela. O oco continua lá, em silêncio. Depois, um passarinho fez ninho. Nesta parte ainda não cheguei. Sou só o oco queimado querendo ficar lá, no fundo, em silêncio. Passarinho? Tudo bem, também.

9 comentários:

Anônimo disse...

Oco e vazio, os sentimentos as vezes se demonstram assim. Solitários, são acolhedores mesmo que só para os pássaros.
Bjs
RE

Anônimo disse...

eis aqui o que se pode chamar de conto perfeito. narrativa pungente, personagens engenhosos ... que mais preciso, leitor que sou, para dizer-te: mas como tu escreves bem, hein moça? 1 beijo

Anônimo disse...

Seu conto é lindo, seus personagens são fortes e verdadeiros, sua literatura é grande e é sempre bom demais vir aqui e passar uns minutos de puro encantamento. Beijos.

Vítor Leal Barros disse...

muito bonito este texto... muito claro e muito vivo... senti todas as emoções, todos os cenários... é sempre bom visitar-te

um beijo

Dalva M. Ferreira disse...

No duro: você é nota 100. Daquelas de livro grande, mesmo. Um abraço e manda mais, manda!

Claudio Eugenio Luz disse...

é na sutileza dos detalhes que a gente descobre aquilo que os olhos não veem, como nesse belo conto.

hábeijos

Ivã Coelho disse...

Mais uma imagem retida rente à retina, e estas palavras que me fazem arfar, é bom ser leitor de quem tem faca afiada e desenha bem com ela letras de firme e fincado punho.

Isso aqui é um paraíso quando prostro-me diante do monitor: emanações e contentamentos.

Parabéns!

Anônimo disse...

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Ricardo disse...

Bah, que lindo (nas últimas lidas que dei no blog tinha pulado esse texto).

Linda cronica.

bjs, linda.