quarta-feira, setembro 28, 2011

Primavera

A primavera deitou-se nas folhas dos ipês e seu peso de luz vergou as ramas e verteu húmus sobre o solo ainda úmido e gelado. Germinou liquens, musgos, samambaias, cutucou sementes, expandiu corolas, espreguiçou pistilos, pulverizou polens. Há muito eu tinha icebergs flutuando nos olhos. Há muito a umidade fria do longo inverno me acabrunhara as juntas, compactara os ossos, ressecara as peles. Hoje beijou-me o sol. E eu não sei como a vida seria, não houvesse essa aparição repentina, esse inusitado retesamento de músculos em movimento, uma quase fragilidade de sair às ruas, de tocar o dia, de ouvir de novo a alegria da vida quando se instala e se sabe súbita e se reconhece apenas ... por enquanto. Ah, o medo de recuperar o mundo na plenitude de uma estação. É preciso ver os ipês, os guapuruvus, os jacarandás, as azáleas, as hortênsias... é preciso, é preciso, é preciso ver Porto Alegre, estar em Porto Alegre, viver essa cidade. É preciso ter passado pelo inverno aqui, antes de sentir o beijo que anuncia que a tudo faz rebrotar, tudo renascer, que anuncia que a vida inteira germina nos parques, nos dentros, nas peles, nos seios, nas músicas, na poesia, no sentido que agora faz tudo o que acontece e o que passou. É isso: a primavera, aqui, faz com que todas as coisas, todo o passado, todo o futuro, todo o bem e todo o mal e toda a grandiosidade de tudo o que há, diga: Estou viva! Reconheça-me! É preciso que a Primavera o beije, em Porto Alegre.

(Texto: Cecilia Cassal - Imagem: Cecilia Cassal: Um Tigre entre orquídeas)

Um comentário:

Dalva M. Ferreira disse...

Porto Alegre, São Paulo, uma cidade qualquer. O lugar é o lugar em que se vive, onde o corpo moído pela dureza de dias mais duros vai ao encontro com a primeira brisa da primavera. Eu, poeta temporã, encontrei a primavera num vasinho sobre a cômoda: não é que o danadinho sabia que precisava florir?! Coragem, força, florir é preciso.