sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Eu estrangeira

Eu não tenho a calma dos tempos contados, tenho medo. Um medo que descubro aos poucos em tamanho, em velocidade, em imprecisão. Um medo que é atravessar uma rua e não dar tempo, uma demora em ver. Um medo como algo crescendo entre minhas frestas, algo que não sei de que cor será ou se terá alguma, a forma, o cheiro, um medo tão absurdo que só estremeço dele quando fecho a porta sem que nenhuma arma tenha sido apontada. Por mim. Eu não tenho a calma dos tempos pensados. Eu tenho essa saudade, fenda em terremoto, ferida que não descansa, menino que chega e eu não sei como tocar, se algo em mim desintegra. É isso, eu não tenho calma, essa ascese a um nirvana que sequer cobiço. Só tenho saudade, que é como desaprender uma língua, um gosto, um acento familiar e nada mais ter depois disso: um breu. Um medo que é como profanar um lugar onde nunca estive. Um medo que é como rasgar uma bandeira, eu estrangeira.
(Texto e Imagem: CeciLia Cassal - Baía de Juan Grieco - Isla Margarita)

12 comentários:

Cosmunicando disse...

ah... nem sei, isso é lindo!

Anônimo disse...

não conheço a baía de juan grieco, nunca estive em isla margarita... como é possível, então, "estar" e "se ver" tanto nesta paisagem, eu, apavorado e nostálgico de mim?...
1 bj.

Janaina Amado disse...

"Um medo é como rasgar uma bandeira, eu estrangeira." Bonito, verdadeiro e poderoso o seu texto, Cecília.
Também sinto medo.

marcia cardeal disse...

Belíssimo texto, Cecília!!! Saudades de você! beijo

Anônimo disse...

Eu resolvi dar uma espiada como quem vai ali, no Paraíso, dar uma volta e depois... volta! E não voltei. Fiquei ali, no teu texto, preso nele, sem defesa. Que sequência admirável, invejável esta: "É isso, eu não tenho calma, essa ascese a um nirvana que sequer cobiço. Só tenho saudade, que é como desaprender uma língua, um gosto, um acento familiar e nada mais ter depois disso: um breu. Um medo que é como profanar um lugar onde nunca estive. Um medo que é como rasgar uma bandeira, eu estrangeira."

Caríssima Cecilia, tu estás com poesia em cada poro. E por "poesia" quero dizer filosofia, literatura, fotografia – enfim, sensibilidade a um grau incalculável de tão elevado.

Parabéns e obrigado pela viagem.

Anônimo disse...

Só dei uma passada aqui para o óbvio: reler o belíssimo texto. Aliás, ler mesmo não é ler, é REler. E os teus textos exigem isso de nós, famintos de beleza e de profundidade. Uma segunda vez. E uma terceira. Até o próximo post...

Parabéns, autora.

Ton Neumann disse...

Mana minha, irmã de toda vida, nascida de outro ventre mas forjada do mesmo barro. Ninguém me toca com seu texto mais que tu, ninguém, nem mesmo eu, me traduz com mais propriedade naquilo que escreves. Ainda que o que escrevas não seja para mim, me encontro em todos os signos que tua pena derrama, sem medo de expor-se(me), sem receio de ser precisa e frofunda, rica em essência, linda na forma.. Te amo e te preciso em minha vida, cada vez mais. Tu, que és uma das mais precisas traduções do que seja carinho e amor.

Ton Neumann disse...

Mana minha, irmã de toda vida, nascida de outro ventre mas forjada do mesmo barro. Ninguém me toca com seu texto mais que tu, ninguém, nem mesmo eu, me traduz com mais propriedade naquilo que escreves. Ainda que o que escrevas não seja para mim, me encontro em todos os signos que tua pena derrama, sem medo de expor-se(me), sem receio de ser precisa e frofunda, rica em essência, linda na forma.. Te amo e te preciso em minha vida, cada vez mais. Tu, que és uma das mais precisas traduções do que seja carinho e amor.

Anônimo disse...

Cecília, venho retribuir a visita. Fico feliz com o comparativo do emu texto.
Sou como você, tenho medo. Sou estrangeiro no país de origem. Cultivo nuvens para uma velhice cheia de sonhos. Nuvens de várias cores. E a saudade, ah, a saudade... minhas gavetas são feitas de lembranças.

Excelente texto.

CarolBorne disse...

Cada vez que venho aqui (...confesso que o trabalho quase não me deu tempo de estar mais presente) fico como que encantada com a beleza deste espaço, com as palavras da Cecilia, com as imagens que ela faz... eu sinto essas coisas com uma força que não se explica.

Rubens da Cunha disse...

E eu sou um teu igual

mulher de sardas disse...

lindo. de medo entendo bem e escrevo bastante também. tudo a ver com essa saudade aberta e essa ferida sem tradução.

amo tudo aqui.

beijos.