terça-feira, outubro 31, 2006

História para compartilhar (e agradecer)

Era uma vez uma guria que cresceu depressa demais. Pernas longas demais. Finas demais. Aerodinâmica posterior inexistente. Cabelos anelados demais. Sardas demais. Saliências anteriores escamoteáveis por largas camisetas. Desengonçamento e vergonha.

Certa vez, carregando a cabeça sempre baixa pelas calçadas, ouviu de alguém uma quase-sentença: g o s t o s a ! Uns trezentos passos adiante, olhou em volta. Deveria haver alguém a quem se destinaria tal comentário. Não havia !!

Dias atrás, a tal guria recebeu um telefonema: - parabéns, estás entre as finalistas do Histórias do Trabalho. Como nas outras vezes em que ouvira coisa semelhante, o mesmo ímpeto de olhar para o telefone: era para ela mesma que estavam dizendo aquilo? Deveria haver engano, talvez estivessem confundindo as pessoas. Não estavam. Seu conto Ocos tinha sido selecionado para a antologia anual.

Gostoso, isso.

Ao Nelson Safi, autor de Balas de Coco, amigo e colega de oficina, que viu primeiro e teve a delicadeza de ligar.

(foto: Helder Gonçalves)
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Ocos
(a quem pediu para ler)
Gosto do silêncio sério de João Rudá. Depois da lealdade em cuidar das minhas coisas, essa talvez seja a sua maior virtude. Se eu falo, ele ouve. Compreende? Quase sempre. Se eu calo, ele trabalha até o sol se por. Algumas vezes trabalhamos quietos por horas, turnos, dias inteiros. Impressionantemente, ele sabe. No começo, quando cheguei neste lugar, era só ele. Trouxe-lhe os pertences do irmão que morreu, sozinho, em uma enfermaria da capital. Ele recebeu. Deu as costas. Entrou na casa. Voltou. Escancarou a porta. Não precisava, eu já tinha visto, a casa era aquilo mesmo, aquela peça enfumaçada, a chaleira enegrecida soprando vapores sobre a chapa de aço. Agradeci. Voltei pela estrada de chão e precipício. Pensei na pobreza de pertences. Na pobreza de vozes. Na solidão. Voltei em duas semanas, uns trastes no carro: bacias, pratos de jogos descasados, copos, o casaco de um homem que já não o usaria mais. Voltaria ainda mais vezes. Numa destas, na curva da estrada que enxerga o outro lado da montanha, uma placa: Vende-se. Estacionei, bati palmas em frente ao portão, ô de casa, o galpão distante. Ninguém. Nem um cão. Uma vaca mugindo longe. Vencido o arame que prendia a porteira, o capim crescido num caminho antigo, a porta encostada. O telheiro. Alto, caberia um trator. Uma escada, um mezanino pequeno separando em duas metades. Frestas de telhas filtravam o sol. Sobre o tablado do alto, um buraco para o céu. João Rudá limpou. Ceifou o mato, consertou as telhas, pôs tábuas no assoalho, abriu janelas. Não tocou nas tesouras grossas de eucalipto que sustentavam as telhas. Fez um fogão de tijolos no centro de tudo, colocou chaminé de zinco com galo de ventos na saída. Não pintou. Ainda não. Comecei a ajudá-lo todos os finais de semana, exilada das demandas cotidianas. Um dia me trouxe Helga, a viúva. Não fosse por falar o que nós dois não falamos, é uma boa pessoa. Depois que foi morar com João Rudá, a tapera ganhou jardim, a privada virou banheiro. Traz as panelas de alumínio areadas e secas no sol. Helga é uma boa mulher. Fala demais, só isso. Mas faz pães de aipim magníficos. Mas planta temperos que me traz em exagero. Mas cuida do bom João, que cuida bem de meu jardim. Mas entende a mudez de nascença dele. Fala por ele também. Não sei se ele gosta. Como não ouve, acho que nem liga. Decidi ficar por aqui. Dizem, na cidade, que é a capital da longevidade. Não importa, gosto mesmo é do que fica para cá desta porteira. O olho que corre longe, pelo vale. O outro que alcança alto, no espaço onde uns homens pensam voar, às vezes, com grandes asas. Também já pensei, era jovem demais. Também um dia quis o mar, mas era bobagem. O mar era muito mais para o desassossego do que para a conquista, pura ilusão. Grande demais. Hoje, sou o oco da árvore que fica mais lá no fundo, perto da ribanceira. Dia destes, temporal veio e um raio despencou sobre ela. O oco continua lá, em silêncio. Depois, um passarinho fez ninho. Nesta parte ainda não cheguei. Sou só o oco queimado querendo ficar lá, no fundo, em silêncio. Passarinho? Tudo bem, também.

8 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns como de costume a está especial guria e adorável escritora.
Bjs

Vítor Leal Barros disse...

parabéns!

Lia, já tinhas publicado este conto antes? tenho a sensação que já uma vez tinha lido este conto do João Rudá aqui no 'lua'

beijo

Ricardo disse...

Parabéns, Lia!

Tenho saudades de POA. Infelizmente quando morava aí não conhecia tua poesia. Pois, com certeza, iria te tietar.

Apesar de não ter deixado comentários, sempre estou de olho nas suas letras, que estão cada vez melhores.

Bjs, linda.

Anônimo disse...

com tua descrição, entendi o porquê de te refletires nesta menina sardenta...

marcia cardeal disse...

Obrigada por compartilhar tanta delicadeza! beijo

Anônimo disse...

Esse oco, acho, é o útero-ninho; que às vezes precisamos, para renascermos sem penas de nós. Passarinhos? Eh, eles sabem, para o que servem, penas...
MontanhosoAbraçoDasGerais.

Anônimo disse...

este teu belíssimo conto já é de meu conhecer. de meu admirar. tomara o quinteto poético tenha sido um sucesso e parabéns pela participação, certamente merecida, na antologia anual.
1 beijo

Ivã Coelho disse...

Menina, os parabéns hoje são de mim para você. O reconhecimento de sua poética farta de significâncias, ânsia de ganhar imensidão. E isso não é ilusão.

Beijos fartos e carinhos deveras.