quarta-feira, julho 26, 2006

O último encontro

Fazia sol, naquela manhã, como fizera claridades meridionais em todas as manhãs daquele outono. Ela, atrasada. Sempre atrasada. Enquanto ainda ecoavam as decisões da prolongada reunião de trabalho, dirigia rápido pelas ruas ladeirentas da zona alta da cidade. Perguntava-se o que teria feito a tia, passada dos seus setenta, viajar mais de quinhentos quilômetros para falar-lhe. Ligou na noite anterior e convidou-a ao almoço. Não, melhor seria dizer, convocou-a. Com a autoridade que emana de determinados velhos muito respeitados, ela dissera: " cheguei à tarde. Te espero para o almoço de amanhã". Prática, como fizera desde sempre. Assustada e feliz, ela murmurou um encantado-assustado-feliz "tá, tia". E desligaram.

Desde a morte da avó, a tia assumira o matriarcado da família. Como irmã mais velha de muitos, tratava de coordenar as finanças dos filhos, a universidade dos netos, a reforma dos prédios de apartamentos com que pensava garantir o futuro de todos. Pó de cimento, comentava-se, era seu melhor estimulante. Uma sobrinha casava e lá estava ela organizando a festança, resolvendo o buffet, colocando algum dinheiro na carteira do noivo, para que ele pudesse dar lua-de-mel distinta à noiva. Outras vezes era o nascimento de um sobrinho-neto, ou de um dos tantos afilhados que a levava a viajar pelo interior ensinar maternagem, costurar, resolver, auxiliar. Tudo muito prático, sempre isenta de julgamentos sobre os modos alheios de viver. Ao próprio marido, enquanto vivo, fazia vontades: a toalha da mesa imaculadamente branca e engomada em cada refeição, o jornal do dia intacto para que ele fosse sempre o primeiro, as músicas clássicas e o tom baixo nas conversas, sempre tão formais. Somente com ele. Como ele gostava.

Pensava em tudo isso para não lembrar do real motivo que fizera a tia cruzar o estado na manhã anterior. Certamente, chegara-lhe aos ouvidos a notícia da separação iminente do casal que ela ajudara a casar, maternar, aconselhar. Embora soubesse de seus cuidados em não intrometer-se, era quase certo que ela, - como tantos da família - tentaria questioná-la, dissuadí-la, perguntar-lhe das razões, um moço tão bom, bom pai, que loucura é essa, minha filha, depois de tantos anos. Com certeza, era disso que se faria o almoço. Ainda assim, iria. Cumpriria todos os ritos do início ao fim. Bater nela, a tia não iria. De resto, naquela confusão em que a vida se transformara, era mais um pórtico a transpor. Daria as explicações necessárias. À tia, não precisaria mentiras. Contaria, se ela perguntasse, as razões. Mulher forte e além do seu tempo, entenderia.

O prédio antigo de grades torneadas em zinabre e dourado, longo o corredor gélido, os ladrilhos geométricos do piso, a agudeza da campainha.

- Oi, tia. Tudo bem? Saudades. (Odiava aquele incontível sorriso ainda infantil e tímido que trazia-lhe covas às bochechas)
- Oi, mintsia. (Sentiu-se empalidecer. Só a avó, a adorada e temida dama germânica, a chamava daquele jeito que ela sequer sabia escrever, mas que devia significar gatinha, em alemão). Como estás?
- Tudo bem, tia. (silêncio longo) A senhora já sabe?

Resmungando algo como espera um pouco, a velha senhora sumiu através da porta que levava aos quartos.

- Toma, fiz para ti. Dentro do pacote mal enrolado, uns panos-de-prato cujo crochê indefectível era uma de suas marcas registradas. - Quando se começa vida nova, precisa-se de enxoval novo.

(em memória de minha Tia Vânia, a última grande matriarca, que ontem começou uma vida nova em um lugar onde talvez só precise dos panos tecidos pelo amor e respeito, que ela ensinou tão bem)

9 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Boa viagem, tia Vânia! Que as Valkírias a levem ao seu celestial repouso...

Que dama!

Anônimo disse...

Realidades de nossa vida...
Bonito isto.
Bjs,
Re

Claudio Eugenio Luz disse...

Homenagem super delicada, uma lição de amor e carinho.

hábeijos

Lu disse...

Estou aqui, minha Lia.
Beijo

Anônimo disse...

alguém que leciona amor e respeito, não há mesmo de ter outra atitude que não seja a de presentear com enxoval novo quem tem a esperança de ser feliz numa vida nova. e é merecedora de tão linda crônica, o que você fez encantadoramente. 1 beijo

i disse...

A homenagem é maravilhosa, de emocionar qualquer tia!

Vítor Leal Barros disse...

é bom guardarmos as pessoas assim...pelo bem que elas nos passaram... a tia vânia estará muito feliz, lá no novo mundo onde ela escolheu morar

um beijo

DE-PROPOSITO disse...

Uma visita por aqui. Um nome bonito 'Cecília'. Aí me lembrou O GUARANI de JOSE DE ALENCAR.
Quero que fiques bem.
Manuel

Anônimo disse...

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