terça-feira, janeiro 24, 2006

Adjetivos


São tantos os adjetivos de que se serve o amor.

Naquela tarde quente de final de janeiro, reconstruíamos um telheiro de guardar ferramentas, após um dos tantos vendavais do final da primavera daquela cidade costeira. Ele removia as tábuas boas e batia-lhes os pregos ao contrário, para que eu pudesse arrancá-los com segurança. Mais tarde, desentortaríamos os menos enferrujados sobre a mesa do torno, para reaproveitá-los nas próximas tesouras do telhado.

Quebradas inúmeras telhas, o pai pediu ao dono do caminhão, que trouxesse uma carga. Telhas francesas. Novinhas. O barro cheirava a vermelho e me lembrava de algo que eu não sabia bem, ainda. Mas foi lá que descobri que as cores, elas também, tinham cheiros, que mudavam de acordo com a nuance. Mais tarde, conheceria os lápis-de-cor no escuro. Mas esta é outra história. Depois das telhas, o olhar do pai perdido. O olhar triste e perdido do pai, olhando o caminhão se afastar.

Ele era um homem bem musical, eu penso. Ainda criança, não me cantava cantigas de ninar senão que tocava, à frente dos meus choros, uma impressionante gaita-de-boca niquelada. Sons que acordavam a alegria em mim. Outras vezes, o pai parecia feliz e cantarolava cantigas antigas.

Naquela hora, resolví despertar a alegria do silêncio do pai. Cantei uma música que - já naquela época - parecia bem antiga, mas que tocava nas rádios anunciando os carnavais. "Eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou de chapéu de palha, eu vou. " Isso era tudo o que eu sabia e sei ainda hoje daquela música, fato que me fez repetir inúmeras vezes a estrofe, à tristeza (ou à náusea) em meu pai. Eu também vou pra Maracangalha um dia, ele disse, olhando para a distância onde havia sumido o caminhão da olaria. Vou ter um caminhão. Sair por este mundo, conhecendo lugares e gentes. Então era isso, o pai queria viajar o olho triste dele nos vermelhos das estradas. Encalhar nas areias das praias, nas bocas dos rios, quando a maré enche e eles se encontram com o mar.

Fiz o que sempre faço, quando não sei o que dizer: canto. Por mim, ou pelo outro. Naqueles dias, o telheiro ficando pronto, o pai pareceu alegrar-se com a minha Maracangalha. Nunca teve o seu caminhão de sair pelo mundo, mas estava mais alegre. Numa das intermináveis cantorias, lembro de tê-lo visto falando ao tio que o ajudava: ela é semitonada.

A delicadeza do caminhoneiro impedia-lhe de chamar a filha de desafinada. Este sinônimo, só vim a conhecer muito tempo depois, a palavra martelando os pregos de desentortar na memória.

6 comentários:

Vítor Leal Barros disse...

gostei do rewind (deste fragmento da memória)

Ricardo disse...

Que bonito! O relato, o acontecimento e o seu pai.

marcia cardeal disse...

Eu senti o cheiro do lugar. Eu senti o olhar de seu pai sobre as coisas... "maracangalhas" do mundo, onde a saudade se pendura. Beijo.

Cláudio B. Carlos disse...

Oi!

Gostei. Texto de singular beleza.
Beijos do CC.

Dalva M. Ferreira disse...

Muito booooooooooooooooooooooooom! gostei, adorei, perfeito.

Parabéns e um beijo.

(tinha que ser do RGS!!!)

Unknown disse...

te leio depressa pra chegar mais rápido ao grande tesouro do último verso, da última frase.
então sento na beira do teu texto e fico escarafunchando beleza.